24 de outubro de 2013

ENTREVISTA: BERNARDO BRASIL CAMPINHO

"A democracia brasileira, embora consolidada, não é uma obra acabada e nem definitiva"
 
Prof. Bernardo Campinho. Foto: Facebook
Nosso blog foi contemplado com uma verdadeira aula que mistura Ciências Política, História, Direito Constitucional e uma vasta experiência sobre a realidade brasileira. Através da rede social, o professor Bernardo Brasil Campinho, 33 anos, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) respondeu nossos questionamentos, onde o blog tenta trazer para os leitores uma reflexão sobre a realidade brasileira depois de 25 anos da aprovação da Constituição Federal. Além de Advogado, professor Campinho (como muitos alunos o chamam) leciona na Universidade Federal da Bahia – UFBA, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ e Universidade Estácio de Sá. Vale a pena conferir!

Blog: Professor, a Constituição brasileira completa 25 anos. Há o que comemorar?

Professor Campinho: Podemos tomar a ideia de comemoração dos 25 anos da atual Constituição brasileira em dois sentidos. Se pensarmos no sentido mais literal da palavra “comemorar”, ou seja, em trazer à memória, penso que sempre devemos olhar o passado para entender o presente e projetar o futuro – e aí há muito que relembrar do contexto em que a Constituição brasileira foi promulgada há 25 anos. A Constituição foi compromissória em dois sentidos - por um lado, porque significou um acordo político entre as forças políticas que se encontravam representadas na Constituinte, tanto à direita quanto à esquerda, embora o centro fosse majoritário e decisivo na deliberação, assim como representou um acordo entre as forças ligadas ao antigo regime militar e o campo progressista que se opôs à ditadura, no que o Texto Constitucional significou a consolidação da democracia no Brasil e ratificou os termos da transição democrática que fora negociada entre os militares e seus apoiadores civis e as forças de oposição. Note-se, contudo, que estes acordos cristalizados na Constituição não foram pacíficos ou consensuais como imaginamos hoje, isso faz parte da nossa “mitologia constitucional”; muitos destes acordos produziram derrotados, que uma vez no poder tentaram reverter derrotas sofridas na constituinte, o que explica, em parte, o grande número de alterações constitucionais que o Texto de 1988 sofreu. 

Se pensarmos a ideia de comemoração como o equivalente à noção de celebração, então há o que se celebrar/comemorar nestes 25 anos, principalmente a vigência do mais extenso período democrático já vivenciado pelo país, a sedimentação de uma cultura dos direitos, não somente os individuais, mas também os coletivos, com o reconhecimento de grupos vulneráveis (mulheres, índios, negros, gays e lésbicas, trabalhadores sem terra, dentre outros) e a defesa de minorias contra maiorias circunstanciais do processo político e social, bem como o fortalecimento de instituições como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o próprio resgate das prerrogativas do Poder Legislativo, tão enfraquecidas pela ditadura militar, não obstante a Constituição também tenha gerado uma expansão e uma hipertrofia do Poder Executivo.

Celebrar/comemorar os 25 anos da Constituição não pode, contudo, transformar-se em um exercício acrítico. O Texto Constitucional de 1988 é datado e permeado de profundas contradições. As mais evidentes são aquelas da ordem econômica, segmento em que se tentou conciliar ao máximo liberalismo econômico e intervencionismo estatal, não sem certa “esquizofrenia”, o que levou a amplas reformas constitucionais de caráter econômico na década de 1990, muitas das quais não foram precedidas de um debate necessário com a sociedade brasileira, as alterações constitucionais foram feitas de forma centralizadora de cima para baixo pelo grupo político no governo de ocasião, como a imposição de uma agenda política e econômica, na base da ideia de que quem vence a eleição governa do jeito que entenda ser melhor e de acordo com suas convicções, como se o governo fosse uma propriedade sua. O processo de reforma constitucional não conta com mecanismos efetivos de consulta e participação popular, isolando por vezes as instituições representativas do diálogo necessário com a cidadania. Na parte de organização do Estado brasileiro, a Constituição concentrou muitos poderes nas mãos da União, ao mesmo tempo em que transferiu muitas atribuições em sede de serviços sociais para os Municípios, no que se gerou um impasse, visto que os deveres do Poder Público local não foram acompanhados do aumento de seu poder de tributação e arrecadação, tornando-os dependentes financeiramente da União. Houve ainda o aprofundamento de um esvaziamento da autonomia dos Estados-membros, processo que se iniciara na ditadura militar.

Devemos pensar em tudo isto quanto pensamos nos 25 anos da Constituição 
brasileira.

Blog: Com tantas emendas, muitos críticos a Constituição falam que a nossa Carta Magna é um verdadeiro periódico. Além disso, há um abismo entre os direitos e garantias fundamentais estabelecidos e a realidade concreta da maioria do povo brasileiro. O que é preciso avançar para melhorar tais questões?

Professor Campinho: Sem dúvida, esta é a Constituição com o maior número de emendas na história brasileira. Isto se relaciona com seus vícios de origem, ambos relacionados ao caráter analítico e prolixo do Texto Constitucional. O primeiro foi o método pelo qual as decisões foram tomadas na Constituinte brasileira. Prof. Dr. Antônio Maués, da Universidade Federal do Pará, tem um artigo muito interessante em conjunto com Élida Lauris dos Santos, denominado “Estabilidade Constitucional e Acordos Constitucionais: os processos constituinte de Brasil (1987-1988) e Espanha (1977-1978)”, no qual identifica um dos problemas do processo constituinte brasileiro: ao contrário da Espanha, onde o método de decisão mais utilizado foi o de concessões mútuas, com vistas a obter o máximo de consenso possível, e consequente adesão, em relação ao texto da Constituição, procurando incluir todos ou o máximo dos grupos presentes na Constituição, no caso brasileiro recorreu-se com frequência adiamento da solução do conflito para a legislação infraconstitucional, decidindo-se diversas questões importantes por maioria aritmética, o que não foi aceito por maiorias relevantes. Antônio Maués e Élida dos Santos dão como exemplo de impasse que gerou a decisão por maioria aritmética questões relativas aos direitos sociais, que dividiram direita e esquerda na Constituinte, como no caso das horas extras, em que o texto aprovado contou com forte oposição da esquerda, e mesmo de setores do PMDB e de outros partidos de centro, que consideraram um retrocesso a remuneração em cinquenta por cento da hora normal, quando tribunais trabalhistas na época já concediam na resolução de litígios trabalhistas remuneração de cem por cento. Os autores mencionados identificam ainda a dificuldade de não decidir da Constituinte brasileira no capítulo da ordem econômica, não por acaso uma parte da Constituição que sofreu profundas alterações por meio de reformas constitucionais na década de 1990. 

Apesar do exposto, a Constituição de 1988 é a terceira mais longeva da história brasileira e, a despeito do grande número de reformas é a base institucional para um período de democracia e de ampliação de direitos civis, políticos e sociais, algo inédito no país, além de trazer novos direitos como os relativos à questão ambiental. Parte disto se deve ao fato de que a Constituição restabeleceu a aprofundou a democracia política no Brasil, articulando sua dimensão formal à instrumentos de participação popular e a um amplo catálogo de direitos. Nestes pontos, o Texto da Constituição foi construído a partir de um consenso com as forças políticas e sociais presentes na Constituinte e, ao contrário de outros casos de transição política democrática, como o do Chile, o regime militar que estava sendo superado não tinha condições efetivas de fazer grandes imposições, a capacidade de negociação de seus opositores no campo democrático era maior, em parte pelos processos sociais, ainda que imperfeitos e/ou incompletos, em torno da anistia política (1978-1979), da campanha das Diretas Já (1984), da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985 e da ampla mobilização popular de segmentos engajados (movimento negro, mulheres, igrejas, empresariado, etc.) durante a constituinte, processos que geraram um acúmulo democrático significativo e que afastaram em grande medida a possibilidade dos herdeiros do regime militar e outros setores conservadores de se impor como maioria na Constituinte. 

Neste sentido, sua colocação sobre direitos e garantias fundamentais me parece estranha, porque justamente a parte mais vitoriosa e consolidada do Texto da Constituição de 1988 é o título sobre direitos e garantias fundamentais, justamente um dos poucos títulos em que predominou a decisão por concessões mútuas, gerando um consenso, como aponta o artigo de Antônio Maués e Élida Santos. É preciso entender também que o Direito não descreve a realidade social fática, mas é, ao mesmo tempo, uma pretensão de validade sobre esta realidade e uma projeção de expectativas sociais para o futuro. No primeiro caso, o objetivo da normatividade jurídica é regular as condutas sociais para que a realidade reflita seus enunciados jurídicos, o que sempre implica em uma tensão, em que ora o normativo prevalece, ora a realidade se impõe – neste último caso, os juros de 12% ao ano são um exemplo claro de fracasso da Constituição em regular a vida social. Mas no que tange os direitos e garantias fundamentais, se o catálogo posto pela Constituição não refletia ou não reflete a realidade, trouxe condições para modifica-la substancialmente, com a inclusão cidadã de grupos e pessoas alijados das decisões no processo político majoritário – basta lembrar as aplicações da não discriminação e da igualdade constitucionalmente consagradas para legitimar as políticas afirmativas e a união entre pessoas do mesmo sexo, conforme decisões do Supremo Tribunal Federal, ou mesmo invocar a liberação dos eventos conhecidos como “marcha da maconha” pela mesma Corte, tendo por base os direitos à liberdade de expressão e de reunião. Quem poderia imaginar decisões judiciais como estas durante as décadas de 1970 e 1980, ou mesmo durante o período democrático de 1946-1964 (período no qual inclusive se proibiu um evento da Igreja Católica Brasileira com base no argumento da “ordem pública”, e no qual o Partido Comunista foi mantido na ilegalidade por decisão judicial em razão de interpretação casuísta e absurda da ideia de caráter nacional, revelando uma subordinação da interpretação judicial dos direitos fundamentais ao processo político e à maioria vigente)?

Blog: Assim que surge uma conjuntura oportuna, ouvimos lideranças políticas pregarem uma nova Constituição para o Brasil com a justificativa de fortalecer o processo democrático. Realmente o país necessita de uma nova Constituição?

Professor Campinho: Não penso que exista, de fato, uma pregação das lideranças políticas. A última liderança política significativa que eu recordo ter defendido claramente uma nova assembleia constituinte e, consequentemente, uma nova Constituição para o Brasil foi o ex-deputado federal Luiz Carlos Santos, de São Paulo, que foi uma liderança política de peso no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e que tinha proposta neste sentido, mas, isto é importante, propugnava a manutenção do título sobre direitos e garantias fundamentais da atual Constituição (arts. 5º a 17). 

No final do primeiro governo do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva surgiu a história da Constituinte exclusiva para realizar uma reforma política, o que gerou em si reações políticas e da comunidade jurídica, alegando que não se pode reformar a Constituição por meio de uma Assembleia Constituinte, procedimento que caberia apenas ao Poder Constituinte Originário, ilimitado e inicial, expressão máxima da soberania popular. Como resposta aos protestos de junho, o atual governo federal, na pessoa da Presidente Dilma Rousseff, e o Partido dos Trabalhadores trouxeram novamente a temática da reforma política por meio de uma Constituinte exclusiva, algo que logo foi deixado de lado, diante da reiteração das críticas, e cedeu lugar para a ideia de um plebiscito sobre a reforma política, o que também ainda não ocorreu.

Não penso que o país precise de uma nova Constituição. Ao contrário do Chile (onde o tema está na agenda desde as eleições de 2009/2010 e voltou neste ano, mesmo com a oposição das forças políticas de direita), onde o Texto Constitucional vigente, mesmo após diversas reformas, ainda tem a marca da Ditadura Pinochet, especialmente no que tange ao sistema político-eleitoral, no Brasil não há uma mobilização popular por um novo Texto Constitucional, em razão da identificação da Carta vigente com o ocaso da ditadura e da consolidação da democracia e do discurso dos direitos que ela representou.

Parece que a ideia de mudanças constitucionais no Brasil está relacionada aos defeitos e imperfeições da Constituição, especialmente no que tange ao processo eleitoral e em temas de Organização do Estado (como na questão da repartição entre receitas tributárias e competências constitucionais entre os entes federados). E aí se buscam sempre formas de superar estes pontos em que a Constituição (seja enquanto norma ou legislação constitucional, ou como sistema constitucional) não consegue apresentar respostas válidas para problemas de representação política e de gestão. Mas não vejo porque os meios vigentes de alteração constitucional, mesmo com as imperfeições que apontei na primeira resposta, não podem dar resposta a estas questões, visto que se colocam na mesa decisões políticas extremas, que alteram de forma radicalmente substancial o quadro do Estado constitucional e violem os limites ao poder de reforma dispostos no art. 60, parágrafo 4º, da Constituição. 

Há certo mal estar da academia com a ideia de um Poder Constituinte originário, que surge  com limitações, ainda que este possa se autolimitar em tese, como observou Pedro Serrano em entrevista para Maria Inês Nassif no Portal Carta Maior. É preciso lembrar ainda que as constituintes sempre enfrentem condicionamentos políticos que lhe são impostos externamente – O Ministro Luís Roberto Barroso lembra bem em seu “Curso de Direito Constitucional Contemporâneo”, que a Constituição de 1891 foi precedida da proclamação da República e da transformação do Brasil em Federação pelo Decreto n.1 de 1889; a constituinte de 1946, que originou a Constituição daquele ano, teve que reconhecer os resultados das eleições presidenciais de 1945. Existem modelos sobre o poder constituinte, mas a teoria constitucional não é estanque, novas respostas podem surgir para enfrentar novas questões – no caso, como preservar a Constituição de 1988 e, ao mesmo tempo, modernizar política e socialmente a democracia brasileira. É possível fazer isso dentro dos limites da Constituição vigente ou encontrar respostas que fiquem no meio do caminho entre continuidade e ruptura? Creio que estas são escolhas políticas da cidadania e a academia terá que enfrentar seus fantasmas se o segundo caminho leva a um novo modelo de poder constituinte.

É preciso registrar também que há certa irresignação de setores sociais consideráveis com o caráter contramajoritário ou limitativo de alguns pontos da Constituição, particularmente quando relacionados ao devido processo legal e ao sistema penal, como a proibição da pena de morte (amplamente defendida entre segmentos da população brasileira, de acordo com pesquisas de opinião pública) e a questão da menoridade penal ser ou não uma garantia individual e, logo, não poder ser objeto de redução como pretende parcela da população. Aí há uma questão das funções que os direitos fundamentais exercem como formas de proteção não só contra o Estado, mas também contra outros grupos hegemônicos no processo político e social, ainda que amplamente majoritários, bem como a leitura que pode se fazer da oposição a certos direitos e garantias individuais – quando se defende pena de morte, esta é uma demanda genuína, ainda que inconstitucionalmente legítima, ou uma reivindicação que remete para a necessidade de implementação efetiva de políticas de segurança pública e enfrentamento da criminalidade? Teríamos a mesma preocupação com pena de morte e menoridade penal se o quadro social quanto à criminalidade fosse semelhante ao de países com baixos índices de criminalidade? Com exceção dos Estados Unidos e do Japão, não há pena de morte em tempos de paz em nenhum outro país democrático, por exemplo. Já a questão da menoridade penal pode ter sido um perfeccionismo constitucional (isto poderia não ter feito parte do Texto Constitucional). Mas isto pode refletir uma sociedade órfã em políticas públicas de segurança, e não necessariamente um movimento popular de contestação frontal à Constituição. Aqui parece que estes setores não refletem um desejo de ruptura com a ordem constitucional vigente, mas sim pontos de estranhamento que não desmerecem o sistema como um todo. 

Blog: Qual a avaliação que o professor faz da democracia brasileira?

Professor Campinho: Já falei sobre a democracia brasileira de certa forma nas perguntas anteriores. Especificamente sobre a sua pergunta, na minha avaliação temos uma democracia jovem, que se insere naquilo que Samuel Huntington em sua obra “A Terceira Onda” chamou de “terceira onda democrática”, ou seja, nas democracias que surgem a partir do fim oficial (ou formal) do processo de descolonização da África e da Ásia nos anos 1970, que passa pelas transições democráticas na América Latina, na África do Sul e no Leste Europeu nas décadas de 1980 e 1990. Somos uma democracia de massas em um país continental, com uma demanda crescente por mais direitos, por que tragam melhores condições de vida, por desenvolvimento em todas as suas acepções (nacional, regional e socioeconômico), o que passa por reivindicações de melhor infraestrutura, mais segurança, novas oportunidade econômicas. O processo político brasileiro é caracterizado como típico de uma democracia de massas e é permeado pelas transformações tecnológicas do mundo atual, onde a nova geração domina cada vez mais e melhor o conhecimento do que as gerações anteriores – neste sentido, a ampliação da democracia passa pelos novos meios digitais e a redes sociais, ainda que com tensões e estranhamentos com os ritos formais da democracia representativa. Não temos uma democracia perfeita, mas não vejo condições para retrocessos quanto à democracia como regime inclusivo e participativo, que mescla as formas tradicionais de representação (eleições), com novas demandas de participação e atuação no espaço público e a constante reivindicação de direitos. Assim, a democracia brasileira, embora consolidada, não é uma obra acabada e nem definitiva, por vezes consegue ser original e capaz de eventos como as mobilizações de junho, ainda que sempre tenha que se equilibrar no presente entre vícios do passado e esperanças para o futuro. 

Blog: Qual o modelo de reforma política que pode colaborar para fortalecimento da democracia brasileira?

Professor Campinho: Penso que aqui é muito difícil falar como “especialista/expert”, como se eu fosse um médico oferecendo um diagnóstico a um paciente, ou um engenheiro identificando como resolver um problema de estrutura de uma construção, talvez porque neste caso as respostas tenham que ser coletivas, ou obra da cidadania como um todo, e não apenas reflexo de uma equipe de burocratas ou de intelectuais – estes podem até realizar algumas interpretações e traduções, mas é a mobilização popular que vai delimitar os contornos da reforma política. Posso dizer que a reforma política terá que enfrentar alguns pontos: sistema partidário, sistema eleitoral, financiamento eleitoral e participação política fora do período eleitoral são, na minha visão, os pontos críticos. O sistema político-eleitoral e a questão dos partidos políticos são inclusive pontos em que a ditadura militar conseguiu ser relativamente bem sucedida em manter seu programa durante a constituinte. Agora não sei qual a melhor proposta ou conjunto de propostas em termos substantivos. No que concerne ao sistema eleitoral, eu considero as propostas do Partido dos Trabalhadores de voto em lista partidária pré-definida (fechada) e a do Partido da Social Democracia Brasileira de um sistema misto, como na Alemanha e no México (voto distrital misto, com um voto na lista partidária e outro no distrito) como os melhores modelos apresentados. Óbvio que tudo depende dos termos de efetivação de cada uma: por exemplo, a lista fechada pode criar um círculo vicioso de oligarquias partidárias herméticas, comandadas por cúpulas distanciadas do/as cidadão/ã se não houver, por exemplo, um mecanismo que garanta prévias abertas, ainda que o voto dos filiados tenha neste processo tenha um peso diferenciado; se a proposta do voto distrital misto for adotada como no Japão, em que há uma justaposição entre o voto na lista e o no distrito, estar-se-á reproduzindo todos os vícios dos sistemas proporcional e majoritário de forma combinada – aqui a solução seria a adoção do modelo alemão, em que o voto no distrito pode ter um caráter corretivo das distorções na disputa majoritária. Recentemente, contudo, o Portal UOL conduziu enquete sobre a reforma política e a maioria dos participantes preferiu o sistema distrital simples, em que a vaga no parlamento fica com aquele que obtiver maioria simples na disputa eleitoral no distrito. Não gosto deste sistema, ele cria sub-representação e despreza parcelas significativas do eleitorado, que perdem representatividade – nos países que o adotam, caso do Reino Unido, é muito comum um bipartidarismo de fato que impede o surgimento de novas forças políticas, o que pode ser bem evidenciado pela situação do Partido Liberal-Democrata naquele país, que sempre tem menos cadeiras parlamentares do que a votação que recebe proporcionalmente. Além disso, é um sistema que estimula o personalismo e protege as oligarquias, na minha perspectiva. Mas parece ser aquele sistema que melhor responde aos anseios da cidadania no Brasil, em parte porque nossa experiência social está muito vinculada ao local, à comunidade, em resumo ao nosso mundo próximo, e acredito que isto se expressa no fato de que no Brasil as pessoas preferem votar mais nas pessoas que em partidos – não parece ser usual que o eleitor puna seu candidato por ele ter trocado de partido político, pode ser que o candidato não se eleja por questões conjunturais, como quociente eleitoral e desempenho do partido como um todo, mas a troca partidária no Brasil não é algo mal visto, enquanto nos Estados Unidos, em uma situação de bipartidarismo de fato, é quase um “pecado capital” da política. Penso que este exemplo do sistema eleitoral é emblemático e utilizo-o para mostrar como a ideia de uma reforma política no Brasil tem que passar pela difícil missão de conciliar o ideal, o real, o desejável e o possível – se conseguirmos ficar ao menos com uma síntese dos quatro, talvez ocorra um avanço, mas como eu disse antes esta é uma resposta que pertence a toda a sociedade, ao conjunto da cidadania, e não a um grupo. 

Blog: As manifestações de rua este ano foram duramente reprimidas, através de falsos flagrantes, prisões, pagamento de fiança e até mesmo agressões físicas por parte de policiais. Como avançar para um caminho mais civilizado entre as forças do Estado e os protestos de rua?

Professor Campinho: Neste ponto, penso que a Constituição trouxe as respostas no art. 5º e que não há contradições entre ordem pública, democracia e direitos fundamentais. Pelo contrário, só há ordem pública se entendida como pleno respeito à democracia e aos direitos fundamentais, não há oposição, mas sim integração entre estas noções. É preciso fiscalizar o poder político vigente sempre, para que a justificativa da ordem pública não seja pretexto para institucionalizar um estado de exceção. Lembre-se que a denúncia dos abusos só ocorre porque há mecanismos de controle social das instituições políticas como a liberdade de imprensa e de expressão, representada pela mídia alternativa e, em parte, por certos segmentos da imprensa tradicional, ainda que exista um debate sobre certa oposição entre estes segmentos e as agendas de cada um; ainda, o fortalecimento da advocacia, da defensoria pública e canais de diálogo como comissões de direitos humanos nos legislativos, conselhos de direitos e as ouvidorias (das polícias civil e militar, do Ministério Público e da Defensoria Pública) tem sido potencializados como instrumentos de denúncia e contraponto às arbitrariedades policiais. É verdade que o modelo de segurança pública da Constituição é herdado da ditadura militar, e que a desmilitarização do policiamento ostensivo ou de segurança é um debate necessário, tanto que foi colocado para o Governo brasileiro na última Revisão Periódica Universal perante o Conselho de Direitos Humanos da ONU (e infelizmente o Governo brasileiro preferiu não ouvir a sociedade internacional e rejeitou a recomendação). Mas com o amplo catálogo de direitos e garantias individuais postos na Constituição, a cidadania tem instrumentos importantes para se contrapor ao arbítrio e contê-lo, mudando mesmo este estado de coisas e tornando a segurança pública efetivamente democrática ao permeá-la pelos direitos – mas o limite da normatividade constitucional é claro: normas jurídicas não se impõe à força militar do Estado sozinhas, é preciso ampla mobilização pela efetividade destes direitos e a denúncia vigorosa pela cidadania quando houver sua violação. Justamente porque sabemos dos abusos e porque os estamos enfrentado dentro do quadro da democracia constitucional é que penso que a Constituição tem sido utilizada como forma de legitimar as manifestações populares, sem prejuízo da punição de excessos violentos (desde de que devidamente comprovados, por meios idôneos, e não por falsos flagrantes e prisões ilegais), desempenhando assim um papel, ainda que com limitações fáticas e políticas, de racionalização do poder. 

Blog: O Brasil é um país com dimensões continentais. Algumas conquistas sociais chegaram ao litoral, mas ainda custam a chegar ao povo do interior, principalmente ao semiárido. As forças políticas democráticas defendiam a reforma agrária, a descentralização econômica, incentivos fiscais, mas pouco aconteceu neste sentido. O que faltou nestes 25 anos para o interior acompanhar o ritmo de desenvolvimento social semelhante às áreas tradicionais?

Professor Campinho: Bom, sua pergunta é ambiciosa e mereceria uma resposta mais detalhada ainda, mas aí eu teria que escrever um verdadeiro tratado, se é que já não o fiz nas intervenções anteriores (risos) e tenho certeza de que o inferno guarda um lugar especial para pessoas prolixas (risos). Dito isto, tentarei dar minha contribuição: não sei se não houve um processo de interiorização do desenvolvimento desde 1988, a Constituição ofereceu as bases para isso ao transformar o desenvolvimento regional em objetivo da República e em políticas afirmativas como a criação de fundos de desenvolvimento para o Nordeste, o Norte e o Centro-Oeste, o que não ocorreu por acaso, visto que estas regiões concentravam a maioria dos constituintes. Há, contudo, uma questão de repartição de receitas financeiras, que demanda uma reforma constitucional tributária efetiva (houve uma tentativa frustrada em 2003), assim como rediscussão da distribuição constitucional de competências (como eu disse anteriormente, há uma concentração de serviços sociais nos Municípios sem que os recursos financeiros correspondentes lhes sejam entregues). Veja também que não somente estas regiões passam por problemas ligados ao desenvolvimento, mas também a periferia das grandes cidades. Não custa lembrar que a Constituição de 1988 abriu o epílogo da urbanização no Brasil, hoje a questão urbana é central no desenvolvimento brasileiro, visto que acima de 80% da população vive nas cidades. Ainda não temos políticas e arranjos institucionais eficientes para o problema das metrópoles. Os consórcios públicos para prestar serviços públicos, no plano da legislação infraconstitucional, podem ser uma solução. Mas precisamos pensar as grandes metrópoles como unidades políticas, dar voz e representação em foros para além dos limites do Município. Paulo Bonavides defende em seu livro de Direito Constitucional um federalismo das regiões, penso que indiscutivelmente este pode ser um caminho: criar novos arranjos político-administrativos, para enfrentar problemas de gestão, ao lado do fortalecimento do poder local e da reforma tributária e financeira. Quanto à descentralização econômica, isso depende também de uma negociação efetiva com aos agentes econômicos privados e com a ampliação da infraestrutura – neste sentido, o debate em torno do Programa Mais Médicos, do Governo Federal, deixou isto bastante evidente, ao demonstrar que há uma parte do problema que é de gestão, mas há também questões estruturais do desenvolvimento nacional que impedem a interiorização da riqueza, o que a dificuldade de fixação de profissionais liberais tais como médicos no interior e na Amazônia Legal bem demonstra. Quanto à reforma agrária, este foi o grande debate social entre direta e esquerda na Constituição e sua ausência revela de certa forma a vitória, neste ponto, das oligarquias rurais, pela sua não efetivação, ainda que prevista no Texto Constitucional. Mas, de novo, isto ultrapassa uma dimensão estritamente normativa. 

Blog: Otimismo ou preocupação? Qual a perspectiva que o professor avalia para o povo brasileiro nestes Próximos anos?

Professor Campinho: Eu sou otimista, ainda que com certa cautela. Os vinte cinco anos que se passaram trouxeram vitórias e frustrações quando olhamos o Texto Constitucional, mas penso que as primeiras prevaleceram sobre as segundas, mas não sem tensões, conflitos e impasses. Entre o passado e o futuro existe o presente, a esperança não se torna realidade sem o comprometimento com as previsões constitucionais e a mobilização para torna-las efetivas. Neste sentido, as manifestações de junho, ainda que com certo aspecto de “carnaval cívico”, em que tudo era um pouco festa (e, ainda que com imperfeições, uma festa democrática, que levou pela primeira vez muitos para a rua), me trouxeram esperança de que o país pode mudar e que a Constituição pode ter um papel importante neste processo, desde que tudo não volte a ser como antes, senão daqui a vinte e cinco aos vamos ficar lembrando junho de 2013 como muitos hoje lembram no ano de 1968: com saudosismo e certa decepção do futuro que nunca veio (indico inclusive o filme francês Depois de Maio, que mostra um pouco das desilusões da geração de 1968). Enfim, não podemos abandonar nossa crença na democracia e em suas instituições representativas, precisamos aperfeiçoá-los e transformá-los. Nisto, a Constituição de 1988 pode ser um excelente guia de ação e instrumento de luta pelo amanhã que queremos para o Brasil.

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